Rodas de conversa virtuais promovem interação e trocas entre mulheres de diversas regiões do mundo em tempos de isolamento social.
Texto de Beatriz Carvalho, jornalista e fundadora do Mulheres De Frente.
“Viver em isolamento social ainda pode ser novidade para parcela da humanidade. Para as mulheres o isolamento da vida pública e o confinamento no espaço doméstico marcaram e marcam nossa história. O direito das mulheres a vida pública foi conquistado por muita luta, principalmente dos movimentos feministas, e ainda hoje requer esforço, não apenas para manter as conquistas, mas para poder avançar nesta luta pela igualdade de gênero, dentre e fora de casa.
As mulheres ao longo da evolução foram quase sempre limitadas e impedidas de participar de atos sociais – como direito ao voto, reconhecido no Brasil somente em 1932. No entanto, apenas esse direito era restrito a mulheres casadas e que tinham autorização do marido, viúvas e solteiras e com renda própria. Tais restrições só foram retiradas em 1934. Esse fato importante se deve a luta das sufragistas, movimento social que nasceu na França na década de 1920 e chega ao Brasil com um grupo de mulheres pensando e agindo por direitos igualitários.
Atualmente, o que vemos é muita “militância política” nas ruas, nas instituições e em outros espaços, pois como vimos foram precisos muitos anos de luta e mulheres corajosas a frente de seu tempo para quebrar estas barreiras. Mas quais paradigmas ainda precisamos romper?
Se pensarmos no contexto de hoje com a pandemia do Covid-19 e o isolamento social, quem são as pessoas em maior situação de vulnerabilidade? A primeira morte pela doença no Rio de Janeiro, foi de uma idosa de 63 anos, diabética e hipertensa. Ela trabalhava como empregada doméstica em Miguel Pereira e começou a apresentar sintomas após contato com sua patroa que testou positivo para a doença, ao retornar de uma viagem a Itália – um dos países mais atingidos pelo vírus. Para ampliamos o debate de gênero e analisarmos este caso especificamente, alguns indicadores nos mostram como a mulher está em desvantagem.
Muitas mulheres, mesmo depois de atingirem idade para aposentadoria, continuam trabalhando, pois precisam sustentar suas famílias e não conseguem se inserir no mercado formal de trabalho em razão da idade. A classe proletária, e em especial as mulheres, é a que mais está na linha de frente dos serviços considerados essenciais e são as que menos estão sendo cuidadas neste momento de crise. Ser mulher, negra, moradora de favela, subúrbio ou periferia, mãe solo e chefe de família, são as características da maior parte das brasileiras. São mulheres reais que estão na base das desigualdades de gênero, raça e classe. No momento atual a situação fica ainda pior e as desigualdades mais evidentes.
De acordo com dados do Instituto Locomotiva, 92% das mães solo perderam renda e 72% não estão conseguindo o básico para alimentação. O Governo Federal decidiu liberar para beneficiários do Bolsa Família o direito a receber o auxílio emergencial de R$ 1.200, específico para mães chefes de família, desde que atendam às regras de não ter emprego formal e não receberem nenhum auxílio previdenciário como aposentadoria, pensão do INSS.
Uma professora da Baixada Fluminense, de Itaguaí, mãe solo de 4 filhos, sendo um filho com deficiência intelectual, e inscrita no Cadastro Único há 10 anos descreve que receber o Bolsa-Família é um direito e a melhor forma de acessar as políticas nas diversas áreas: saúde, educação e assistência social, “foi de grande importância receber esse valor agora, pois sou professora e ganho por hora-aula e perdi a minha renda durante essa quarentena. Acredito sim que o governo deveria manter o valor de R$ 1.200,00, pois nos ajudaria muito na nossa reestruturação econômica, pós pandemia”, diz a educadora.
Dados apontam que desde o início do isolamento a violência contra a mulher, nas suas diversas formas, aumentou em número significativo. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no Paraná a violência doméstica aumentou em 12%. Diante de dados tão preocupantes, meninas e mulheres precisam de suporte para que se sintam seguras para continuar acreditando num novo amanhecer com mais justiça social, essas mulheres não são invisíveis.
Recentemente a organização feminista CEPIA, parceira da rede internacional de mulheres WLP (Women’s Learning Partnership), promoveu Rodas de Conversa Virtuais: fortalecimento de mulheres na (nova) temporária realidade do Covid-19. As Rodas tomaram como referencia manuais produzidos pela WLP voltados para o empoderamento de mulheres em diversas regiões do mundo. Os encontros foram facilitados pela Mulheres De Frente e reuniu 10 mulheres diversas e plurais para falarem sobre afetos, isolamento, violências. A ideia deste formato virtual, inédito para ambas organizações, visto que ocorriam anteriormente de forma presencial. Durante as Rodas, buscamos promover um espaço de confiança e segurança para que o grupo se sentisse unido e para que as vivências de cada uma das participantes fossem valorizadas. Escuta participativa, empatia e generosidade foram amplamente praticadas ao longo dos encontros.
O uso da tecnologia foi um desafio para muitas das participantes, não apenas pelo desconhecimento, mas pela dificuldade de acesso à internet. “Para algumas mulheres pretas e periféricas essa realidade ainda é distante de ser igualitária”, desabafa uma militante entrevistada.
As tecnologias de informação ainda não estão totalmente exploradas pelas mulheres. Uma das participantes da Roda, pesquisadora que reside na Alemanha e trabalha com mulheres empreendedoras periféricas em países subdesenvolvidos, diz que, “a tecnologia é avançada na maioria dos países da Europa, mas na Alemanha é atrasada com relação a China. Nas universidades alemãs, no curso de programação tecnológica os homens ainda são a maioria. Mas, existem iniciativas de fomento para mulheres entrarem nas carreiras de tecnologia da informação” revela.
As rodas de conversas virtuais foram divididas em 5 encontros. Com o cuidado de promover a inclusão no espaço digital, o primeiro encontro se constituiu em um tutorial sobre o uso da plataforma online.
O segundo encontro, chamado de ronda afetiva, foi um convite para que cada uma das participantes compartilhasse um relato sobre o isolamento. Uma das participantes explicou que o isolamento com sua família está sendo muito complicado, pois o pai apoia uma ideologia política contrária a dela e a mãe é do grupo de risco e não sai de casa. O pai sai e acaba colocando todos em risco. A cidade de Queimados, onde mora, está funcionando quase que normalmente. Ela e a mãe têm feito muita companhia uma para a outra e esta proximidade está fazendo bem para ambas. “Tenho procurado ler mais, ver filmes. Meu namorado tem lido bastante e visto documentários sobre o assunto das fake news e o uso destas pelo Governo. Tento conversar com meu pai sobre isso. As fake news se reinventam. Faço um trabalho com meu pai e, no dia seguinte, novas fake news desfazem todo o trabalho que consegui fazer”.
Em relação à questão de gênero, com o recorte da Baixada Fluminense, as fake news, estão mais ligadas aos homens. Os homens não respeitam as diretivas da Organização Mundial da Saúde. “Minha mãe é quem sai para as compras, é quem coloca ordem na casa. O pai não toma frente nisso. Está muito claro como nos afazeres da casa, as mulheres são as que fazem esse papel de pilar da casa” conclui a jovem.
Sobre a violência doméstica no contexto do isolamento, “Minha vizinha, que já sofria com violência doméstica antes, agora apanha quase todos os dias. Já ofereci ajuda. É algo surreal, isso tem sido um tormento. O marido age como se nada tivesse acontecido e ainda fala mal dela para as outras pessoas”. A denuncia é o caminho.
Atualmente ficar em casa virou até hashtag. Mas, para as pessoas que não têm o básico para comer, uma casa úmida e pequena com muitas pessoas, falta de saneamento básico, falta de internet, entre outras adversidades o ficar em casa não é opção. Temos também essa gente brasileira que até agora está com seu pedido pelo auxílio emergencial em análise ou negado.
Uma das participantes, após a leitura de um texto sobre Empatia e Direitos humanos, da autora Charlotte Bunch, comentou que “o que inclui o direito das mulheres, cada pormenor da causa feminista tem um impacto significativo no índice de Desenvolvimento de toda a Humanidade. E, por isso, é necessário sim defender uma cultura da empatia, mas não podemos esperar que o Direito seja fruto da empatia. Se formos fazer uma retrospectiva, só na história brasileira, poucos (para não dizer nenhum) foram os direitos assistidos por “caridade” ou empatia” resume a estudante de museologia, de Santa Catarina.
Uma das participantes da Roda, professora e ativista do movimento negro desabafa sobre o que espera para o futuro, “estou esperançosa em dias difíceis de pandemia mundial e muito cansada com o processo de isolamento social”.
As Rodas de Conversa promoveram desdobramentos, para além do fortalecimento de uma rede entre as participantes.
A partir das Rodas, foi criada pela CEPIA a campanha Matriarcas, para as redes sociais , em alusão ao dia das mães, no mês de maio. Cada participante enviou uma foto e uma frase sobre sua mãe, ou uma mulher que tivesse marcado sua trajetória. Para conferir a campanha acesse aqui
Outro resultado dos debates on-line foi a ideia das lives Conectada, produzida pelas Mulheres De Frente com todas as participantes. Uma forma de extensão da formação e também uma nova rede de apoio, “nunca tinha feito uma live, foi a primeira vez e estava bem nervosa. Obrigada pelo convide”, afirma a atriz que participou da live e das rodas virtuais.
Perto e longe nunca fez tanto sentido. Durante nossas conversas virtuais percebemos o quanto temos para caminhar nos diálogos da sociedade civil organizada, muito mais que cobrança de políticas eficazes para as mulheres temos que ouvi-las , entender suas demandas e necessidades e, juntas, construirmos estratégias em defesa de maior igualdade de gênero e de combate ao racismo.
Nota de esclarecimento: decidimos coletivamente não expor nenhuma participante das Rodas de Conversa Virtuais: Fortalecimento de Mulheres na Nova (Temporária) Realidade do COVID-19. Reiteramos que todos os depoimentos contidos nesse artigo são verídicos e foram ditos ao longo da formação pelas suas participantes.”
Texto: Beatriz Carvalho, jornalista e fundadora do Mulheres De Frente.
Organização, produção e facilitação das rodas virtuais: Andrea Romani, Beatriz Carvalho, Mariana Barsted e Karla Oldane.
Parceria: Women’s Learning Partnership for Rights Development and Peace (WLP).
Para acessar os Manuais do WLP clique em:
Manual Fomentando a Tomada de Decisões