A mortalidade materna, que ainda atinge no Brasil um numero expressivo de mulheres, foi debatida em evento organizado pelo Conselho Nacional de Saúde e pela CISMU, em Brasilia. Jacqueline Pitanguy, na ocasião representando a Ministra Eleonora Menicucci , fez palestra sobre esta temática, salientando seu aspecto político.

A Importância do Enfrentamento da Mortalidade Materna no Processo de Construção da Política Nacional :

Avanços e Desafios
1983-2012
Ministério da Saúde
28 de maio 2012
Jacqueline Pitanguy

Agradeço o convite da Ministra Eleonora Menicucci, cuja biografia se confunde com o movimento feminista e o compromisso com os direitos humanos , para participar deste importante evento. Cumprimento a todas as autoridades e a todas e todos aqui presentes.
Gostaria de iniciar minha apresentação ressaltando que  tanto  a definição do conceito de saúde ,inscrito em nossa Constituição como um direito, quanto o exercício desse direito , estão impregnados de luta politica. Se nos referirmos mais especificamente aos direitos reprodutivos, nos quais se insere a questão da morte materna, nos remetemos necessariamente a trajetória da luta dos movimentos de mulheres na configuração conceitual e na implementação, através de politicas publicas, desses direitos.

Sabemos que saúde e doença não se escrevem apenas nos manuais classificatórios da medicina  mas também na dinâmica das relações sociais e na sua representação simbólica onde existem hierarquizações , preconceitos e estigmas. São estas relações e as representações do masculino e feminino impregnadas de desigualdade e menosvalia ,  predominantes em nossa sociedade, que explicam porque,  durante tanto tempo, a saúde da mulher não ocupou um espaço próprio em nossas políticas públicas.

Se , de forma geral os direitos são conquistas permanentemente ameaçadas, os direitos a saúde sexual e  a saúde reprodutiva são  particularmente vulneráveis  pois ainda carecem de uma base de sustentação suficientemente ampla e consolidada de forma a  que ocupem, no imaginário social ,um espaço  de  legitimidade como  uma questão central de direitos humanos crucial para o exercício da cidadania de mulheres e homens , de forma a fazer face as constantes investidas conservadoras.

De fato a ausência de politicas de saúde para a mulher atravessa nossa história. Sendo a mulher, durante séculos, uma cidadã de segunda categoria, cujo valor social dependia largamente de sua função reprodutora, a atuação dos diversos  governos  coadunava-se com esta representação do feminino .Só  nas ultimas décadas do século 20 os primeiros programas de governo na área da saúde reprodutiva da mulher, que contemplavam ações mais amplas como o PPGAR ( Programa de Prevenção de Gravidez de Alto Risco)  de 1977 e o Prev Saúde de 1980 ,são enunciados . Mesmo que tardios,  esses programas  não foram efetivamente implementados por razões orçamentárias mas sobretudo por enfrentarem forte oposição de setores conservadores porque contemplavam a contracepção.

O PAISM é um marco fundamental na historia da saúde da mulher rompendo o  binômio materno infantil que informava as escassas ações governamentais neste âmbito e oferecendo  um exemplo de como tecer estratégias conjuntas entre sociedade civil e governo na implementação de um Programa de saúde que foi paradigmático em seu momento histórico.

A transição democrática de inicio da década de oitenta, traz  novos canais de comunicação e interlocução  da sociedade civil com o governo em diferentes níveis No que se refere a agenda dos direitos das mulheres o PAISM surge em 1983, nesse processo de transição  em um momento de grande efervescência politica do movimento de mulheres, com a criação de Conselhos Estaduais, de Delegacias especializadas (DEAMS), as marchas pelas Diretas Já, a elaboração de Alertas Feministas para as eleições parlamentarias….
Esta ruptura conceitual  trazida pelo PAISM incorpora a um programa de saúde da mulher elaborado no âmbito do Ministério da Saúde, princípios de integralidade, descentralização e regionalização, próprios do movimento sanitarista. Esta política foi formulada a partir das elaborações do movimento feminista e contou com a colaboração de pesquisadoras/es das universidades, e incluia em suas diretrizes a prevenção a educação, o diagnóstico e o tratamento. De forma geral, o movimento feminista propunha uma perspectiva holística e integrada na abordagem da saúde da mulher, onde contracepção, aborto ,infertilidade, concepção, gestação e parto, puerpério, DSTs, menopausa, câncer de mama e cervico uterino se inserissem no ciclo de vida da mulher. As ações relativas à gestação, parto e puerpério, passaram a se constituir numa dimensão da assistência à saúde da mulher vistos na sua indivisibilidade.

. A memoria é feita de momentos, não de sequências. Lembro nitidamente quando recebi no Rio de Janeiro, um desenho preliminar do PAISM, para consulta. E me recordo da emoção que senti ao ler este documento encontrando ali princípios pelos quais tanto havíamos lutado.  E constatar ao mesmo tempo que este programa não contemplava a atenção ao aborto nas circunstancias em que não era criminalizado.

Lembro-me também claramente o dia em que o PAISM  foi apresentado  em cerimonia  da qual participei representando o CNDM ,com a presença do Dr Ezio Cordeiro  Presidente do INAMPS,  e grande aliado , de deputados e de uma religiosa, representando a CNBB. A representação desta entidade em um momento em que o governo apresenta um programa de saúde nos remete a questão fundamental da defesa do estado laico em um pais em que as fronteiras entre estado e religião são, ainda hoje, ténues e frequentemente ameaçadas por investidas de setores religiosos.
Abordar, neste evento, a temática da saúde reprodutiva da mulher a partir do PAISM  é uma oportunidade para uma reflexão mais profunda sobre direitos reprodutivos , saúde e estado no Brasil ressaltando a questão crucial da morte materna.

Analisar a questão da mortalidade materna a partir da exclusão e da fragmentação dos direitos de cidadania das mulheres em função de sua classe social, raça e etnia permite traçar um mapa  ainda bastante perverso da saúde reprodutiva no Brasi.

A mortalidade materna se refere ao óbito sofrido por uma mulher durante a gestação ou até 42 dias após o seu término. Por sua dimensão, constitui um problema crucial de saúde publica. Por ser, segundo a Organização Mundial da Saúde, evitável em mais de 90% dos casos, constitui uma grave violação dos direitos humanos.
Os óbitos maternos, cuja maior incidência se verifica nas regiões mais carentes  do nosso país, evidenciam com clareza as relações estruturais entre corpo e sociedade, atingindo fundamentalmente as mulheres pobres e de baixa escolaridade, com menor acesso a serviços de saúde de qualidade. A precariedade de atendimento durante o pré-natal e o parto, tanto do ponto de vista de instalações e procedimentos adequados quanto do despreparo técnico dos profissionais de saúde e da deshumanizaçao no trato com a gestante, constituem graves violações do direito à saúde, concorrendo para o quadro de óbitos maternos no Brasil, incompatível com a dimensão, a riqueza e o   crescimento econômico do país . As  principais causas médicas da morte materna – hipertensão arterial, hemorragias, infecção pós – parto e aborto inseguro, são evitáveis.  O que gostaria de ressaltar é que, para compreendermos este binômio saúde/enfermidade/mortalidade devemos ter em conta que o corpo da gestante  tem as marcas físicas e psíquicas de sua inserção social .E ter presente que também os processos de diagnóstico e de tratamento incorporam valores e  relações de poder vigentes na sociedade.
Programas e medidas para enfrentar o dramático problema da mortalidade materna dependem menos de avanços tecnológicos e científicos que de medidas de baixo custo e fácil implementação.  Não há, portanto,  escassez de recursos materiais . O principal investimento é o comprometimento político com o direito fundamental das mulheres de gerar a vida e continuar vivendo.

Se nos perguntarmos porque ainda persiste uma relativa invisibilidade e descaso sobre o óbito materno, a resposta está na situação e na inserção política, social, econômica, cultural da mulher na sociedade e no imaginário social sobre o feminino e sobre as relações de gênero. Ao discutir as relações entre saúde e cidadania da mulher é necessário, portanto chamar atenção para a interferência de fatores políticos no campo da saúde, para o papel que variáveis que se situam fora do universo das tecnologias médicas e das ciências naturais, vão desempenhar tanto na conformação do imaginário sobre saúde e doença quanto no acesso aos serviços.

Em um país como o Brasil, com mais  de 58 milhões de mulheres em idade reprodutiva e onde  a maioria expressiva dos partos são realizadas em hospitais públicos, a incidência da mortalidade materna é tanto uma questão de direitos humanos quanto uma questão central de governabilidade O conceito de bom governo (ou governabilidade) está diretamente associado à qualidade das relações entre governo e sociedade, por sua vez relacionadas à capacidade de estabelecer normas e programas que atendam as demandas sociais.

O crescimento da medicalização do parto,  hoje fundamentalmente um ato cirúrgico realizado em ambiente hospitalar do serviço publico, inclusive com elevado e frequentemente abusivo recurso a cesariana,  demanda uma reengenharia do sistema publico de atendimento a saúde reprodutiva da mulher, para que ela receba uma atenção integrada desde o inicio da gestação bem como tenha acesso aos meios contraceptivos para evitar a gravidez indesejada.
Ainda no âmbito dos problemas que cercam a mortalidade materna cabe ressaltar a precariedade de registros. Sendo este um fenômeno de difícil mensuração, requer cuidado e investimento especial na produção de estatísticas que ofereçam um dimensionamento real da morte materna e sua evolução. Dois fatores se destacam : a sub informação resultante do preenchimento incorreto das informações do óbito  quando se omite que este teve sua causa relacionada a gestação, parto ou puerpério. E o sub registro, que é a omissão do registro do óbito em cartório. Relativamente fáceis de corrigir a sub informação e o sub registro tem efeitos negativos sérios no desenho e implementação de politicas publicas.

A questão do aborto inseguro deve ser incorporada a qualquer analise sobre a morte materna. Sendo no Brasil a quarta causa dessa forma de  mortalidade , pode inclusive ter uma incidência maior  devido aos problemas de registro estatístico de abortamento quando realizados clandestinamente. Neste sentido cabe reconhecer a importância do ante projeto de mudança do código penal que ,mantendo os permissivos anteriores de risco de vida e gravides resultante de estupro,  descriminaliza  o aborto nas 12 primeiras semanas de gestação , amplia os permissivos nos casos de risco a saúde e  de má formação fetal grave, irreversível.

A democratização das instituições políticas do país, coincidente com a ampliação da agenda internacional de direitos humanos, significou uma incidência mais profunda y sistemática dos movimentos de mulheres sobre a gestão pública e a introdução, no discurso publico e na agenda política da sociedade, de varias dimensões dos direitos humanos das mulheres, no âmbito da violência e acesso a justiça, sexualidade e saúde, do trabalho, da família, da educação, da participação política, dos direitos sexuais e direitos reprodutivos.
O governo brasileiro, durante a presidência de Lula,  assumiu o  desafio  de cumprir a 5º Meta dos Objetivos do Milênio, da Organização das Nações Unidas (ONU), que é a redução da mortalidade materna em 75% entre 1990 até 2015.    E é importante reconhecer que esforços importantes vem sendo feitos neste sentido. Dentre as estratégias adotadas, foram assinadas, já em  2003, duas portarias ministeriais. A primeira torna obrigatória a notificação de óbitos de mulheres em idade fértil para investigar a causa da morte. A segunda trata da Comissão Nacional de Morte Materna, que oferecerá subsídios para o aperfeiçoamento da política nacional de redução da mortalidade materna, estabelecendo relações com os comitês estaduais, municipais e regionais que serão criados nas localidades com mais de 100.000 habitantes.

Entre 1990 e 2010 a mortalidade materna caiu pela metade no Brasil. Em 1990 para cada 100 mil gestações com bebês nascidos vivos, 141 mulheres morriam. Em 2010, para cada 100 mil gestações com bebês vivos morreram 68 mulheres. As mulheres negras apresentam taxas de mortalidade superiores a das mulheres brancas por complicações de gravidez, parto e puerpério. Comparando os dados de mortalidade materna de 2010 e 2011, observa-se que esta caiu 21% entre janeiro a setembro dos referidos anos (Ministério da Saúde, 25/05/2012).
Este avanço reflete a melhoria do atendimento à saúde das mulheres. Houve redução de todas as causas diretas que levam à mortalidade materna: hipertensão arterial queda de 66.1%; às hemorragias caíram 69,2%; as infecções pós-parto diminuíram 60,3%; aborto inseguro 81,9%; doenças do aparelho circulatório complicadas pela gravidez, parto no de período de 42 dias após o término da gestação foram reduzidas em 42,7%. O Ministério da Saúde ressalta a diminuição  em 19% das mortes maternas por causas obstétricas em 2011 em relação a 2010 .

Os avanços na redução da morte materna estão relacionados  a um quadro geral e melhoria da condição de vida da população.,  O Brasil avançou em melhoria de renda; mais de 40 milhões de brasileiros e brasileiras transpuseram o portal da pobreza; o país é hoje majoritariamente de classe média. O rendimento médio mensal das mulheres, que em 2004 era de R$ 613, atingiu R$ 786 em 2009. Ainda é desigual em relação ao dos homens, mas vem avançando e agora chega a 73,4% do masculino. A expectativa de vida feminina ao nascer, que em 1991 era de 70,9 anos, passou para 77,1 anos em 2009.

A própria educação formal vem aumentando seus números; as mulheres exibem maior escolaridade que os homens. E enquanto em 2003 apenas 5% das mulheres à procura de emprego tinham nível superior, em 2009 este universo expandiu-se para 8,1%.
Ao lado disso, um conjunto de políticas públicas, formuladas desde 2003 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República em conjunto com a sociedade e os movimentos, e que enfrentam a violência contra a mulher e buscam afirmar seus direitos e sua autonomia e promover sua capacitação, sem dúvida impactam beneficamente esta metade da população.
Se celebramos avanços cabe também refletir pois os índices de mortalidade materna são ainda demasiado elevados. Enquanto nos países desenvolvidos esta relação oscila em torno de 10 e em países em desenvolvimento como o Chile e a Costa Rica em torno de 20 óbitos.

Terminaria estas considerações ressaltando que é fundamental traçar metas como estas e cumpri-las. O Brasil está avançando em mensurar o fenômeno da morte materna  de forma acurada e em estabelecer ações programáticas mais eficientes.
Entretanto a maternidade segura se insere em um campo mais amplo de direitos humanos onde a titularidade e o exercício dos direitos reprodutivos pelas mulheres é, no entanto ainda tardia. A lentidão com que tais direitos são incorporados em leis e traduzidos em políticas publicas tem incidências graves sobre a mortalidade materna. Finalmente gostaria de ressaltar, mais uma vez, o caráter histórico dos temas que estamos tratando aqui, particularmente a questão da mortalidade materna. Porque tem um caráter histórico, este fenômeno pode ser reduzido, o que de fato   vem ocorrendo no Brasil.

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