Direitos Reprodutivos e a Eleição de Obama
de Jacqueline Pitanguy
Jornal do Brasil
1º fevereiro de 2009
Imediatamente após tomar posse na presidência dos Estados Unidos, Barack Obama anunciou que fechará a prisão de Guantánamo e que não tolerará, em nenhuma circunstância, o uso da tortura, que constitui uma violação ao direito básico a integridade corporal . Além de efeitos diretos sobre pessoas suspeitas de terrorismo que vinham sendo submetidos a práticas brutais de interrogatório, fechar Guantánamo é também um ato simbólico, pois encerraria quase uma década de desrespeito aos direitos humanos nos Estados Unidos.
A urgência de medidas tomadas logo após uma posse presidencial é um indicador de prioridades. Dois dias após ter sido empossado como presidente, Barack Obama assinou também uma ordem executiva pondo fim a mais um desrespeito aos direitos humanos, neste caso, a proibição ao aporte de recursos das agências financiadoras do seu governo a qualquer entidade, inclusive no exterior, que apoiasse o abortamento, ou mesmo informasse sobre tal prática.
Na justificativa para esta ordem, além de se referir à saúde reprodutiva das mulheres, o presidente evocou sobretudo um princípio central dos direitos humanos, quer seja o respeito à privacidade do indivíduo. No cerne, o direito de decidir sobre dar ou não continuidade a uma gravidez.
Gostaria de enfatizar esta perspectiva de respeito à privacidade, na qual deve ser situada a questão do aborto, porque ela representa um eixo fundamental no conjunto de liberdades individuais que configuram um estado democrático. Entretanto, em sociedades desiguais, tais liberdades só se concretizam de forma igualitária através de políticas sociais que universalizem este direito individual de escolha .
Impedir que as mulheres tenham acesso ao aborto seguro, nunca como uma imposição mas como o exercício de uma escolha livre e responsável , viola um direito individual de liberdade e acarreta um problema grave de saúde pública.
Impedir o fluxo de recursos para entidades que informam, aconselham ou praticam o aborto constitui uma violação ao exercício de um direito e atinge sobretudo as mulheres de menos recursos que não podem pagar os serviços particulares.
É de pleno conhecimento dos mais diversos setores do governo e da sociedade que o aborto provocado em circunstâncias inseguras quando efetuado por pessoal não qualificado e em instalações inadequadas é uma das principais causas da mortalidade materna. Aquelas que sobrevivem podem apresentar graves complicações, como hemorragia, septicemia e choque. Outras podem apresentar sequelas físicas, desde problemas ginecológicos diversos até mesmo infertilidade. Entretanto, premidas por problemas diversos, desde a ausência de condições materiais para levar a termo a gravidez diante da responsabilidade com os os filhos que já tem ou que pretende ter, a traumas e dificuldades de ordem emocional, no Brasil, estima-se que são realizados em torno de 1 milhão de abortamentos por ano.
O aborto não é um método de controle da fecundidade e não substitui o acesso ao planejamento familiar. Trata-se de um último recurso do que se servem as mulheres para enfrentar o drama de uma gravidez indesejada e, quando realizado em condições seguras por profissionais qualificados, praticamente não oferece riscos a saúde. Por esta razão, a maioria expressiva dos países desenvolvidos permite o acesso ao abortamento voluntário em circunstância diversas .
Nosso país tem lamentavelmente uma legislação extremamente restritiva pois o Código Penal da década de 40 não contempla nem mesmo a interrupção voluntária da gravidez em casos de anencefalia, que é uma má formação fetal grave, irreversível e incompatível com a vida.
Do ponto de vista cultural há também grande dificuldade em estabelecer um debate público amplo, plural e democrático sobre o tema, dominado por questões de ordem religiosa onde aqueles que se colocam contra o direito de escolha da mulher com relação ao aborto se atribuem o direito de proferir julgamentos e condenações morais às mulheres que optaram, em algum momento de suas vidas, a interromper uma gestação.
Há uma saga persecutória em curso. Parece que caminhamos na contramão da história, com um frenesi acusatório que lembra a inquisição, as fogueiras onde arderam milhares de mulheres ao longo de três séculos: fichas de clínicas particulares são escrutinadas a procura de mulheres que tenham interrompido uma gestação, uma CPI persecutória ao aborto está sendo instalada em um Congresso Nacional que parece se distanciar do estado laico cujo governo integra, e distanciar-se das milhões de mulheres em idade fértil que deveria representar, preocupando-se em ampará-las e garantir sua saúde e seus direitos reprodutivos, e não em persegui-las em movimentos punitivos ameaçadores e invasivos.
Neste momento em que estamos celebrando a plena restauração da democracia nos Estados Unidos, a garantia dos direitos individuais e da liberdade de escolha, do respeito à privacidade e à saúde reprodutiva, da negociação e da diplomacia em contraponto à força bruta, seria importante refletir sobre a construção de nossa própria democracia, para que seja realmente plural, laica e sustentada na matriz dos direitos humanos.