Equipe da CEPIA se solidariza com os profissionais de saúde do CISAN que realizaram o abortamento na menina de 9 anos que engravidou em razão de estupro por parte de seu padastro e rejeita a intervenção da Igreja Católica em questões de saúde. Manifeste seu apoio a estes profissionais em www.ccr.org.br.
Saúde Reprodutiva e Sexual e Igreja Católica: Universos Paralelos
Jacqueline Pitanguy
Nesta conjuntura em que três eixos fundamentais da temática dos direitos sexuais e reprodutivos se apresentam de forma paradigmática na sociedade brasileira, quer seja, a violência sexual sobre a forma de estupro de uma menina de nove anos, a resposta adequada do estado no sentido de prover, na rede pública de saúde do Recife, a interrupção da gravidez desta criança, e a reação inaceitável da Igreja Católica que, desrespeitando o caráter laico do estado brasileiro tentou evitar que tal procedimento fosse efetuado, gostaria de chamar atenção para outro momento sumamente importante na história da saúde reprodutiva no Brasil. Celebramos, neste mês de março, os 25 anos do PAISM, Programa Integral de Saúde da Mulher, uma conquista, sempre renovada.
O PAISM, que contemplava as dimensões da prevenção, educação, diagnóstico e tratamento e cujas diretrizes foram norteadas pelos princípios da integralidade, descentralização e regionalização, próprios do movimento sanitarista, foi elaborado no âmbito do Ministério da Saúde, ainda em 1983, com a participação de feministas e de representantes de Universidades, antecipando então uma colaboração entre estado e sociedade civil após o divorcio entre estes, que caracterizou o regime militar.
O PAISM já incorpora o principio da OMS (Organização Mundial da Saúde) de situar a saúde com um direito humano, principio que seria reafirmado na Constituição federal de 1988. Entretanto, mesmo não considerando o atendimento ao aborto, desde o inicio este Programa, onde pela primeira vez, o Estado brasileiro assumia formalmente um compromisso com a saúde da mulher, enfrentou grandes resistências da Igreja Católica que se colocava contra o uso de contraceptivos, a não ser os naturais. De 1985 a 1989, quando estive no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, acompanhei quotidianamente a regulamentação e efetiva implementação do PAISM. O CNDM empenhou-se em apoiar este programa, tendo sempre na Igreja Católica um opositor posto que não aceitasse os contraceptivos então oferecidos como a pílula, o diafragma e o DIU. Lembro-me que em 1986, com a presença do Dr. Ezio Cordeiro, então Presidente do INAMPS, ocorreu a regulamentação do Programa pelo Ministério de Previdência Social e que nesta cerimônia, estava presente uma religiosa, representando o CNBB. A Igreja Católica sempre esteve presente em questões de saúde e de ciência, especialmente no âmbito da sexualidade e da reprodução humana. O embate e as tensões entre a verdade científica, baseada na evidencia empírica e a verdade revelada, baseada na fé e no dogma não são passíveis de conciliação. Coexistem em universos paralelos.
Portanto ao celebrarmos os 25 anos do PAISM estamos de fato celebrando a implementação de um programa de saúde em um terreno ainda hostil, onde a Igreja Católica se faz presente como opositor poderoso ao exercício de um direito humano fundamental, garantido desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, quer seja, o direito ao progresso da ciência ferindo também o direito a saúde assegurado na Constituição. O caso dramático da menina do Recife é, neste sentido, um ponto neste continuo deste embate evidenciado recentemente na questão da pesquisa com as células-tronco embrionárias e no aborto por anencefalia, debatidas no Supremo Tribunal Federal. E reafirmado quando, ao chegar ontem a Camarões em sua primeira visita a África, continente devastado pelo HIV/AIDS, o Papa volta a declarar a posição contrária da Igreja Católica ao uso do preservativo…