Sob o Manto Domestico
Jacqueline Pitanguy
Durante séculos a violência contra mulheres exercida entre os muros da casa, por maridos e companheiros, conhecida como violência domestica , não tinha visibilidade publica nem era reconhecida como crime. As mulheres apanhavam no silencio do lar,entre tapas e beijos, no espaço emocional que , teoricamente, lhes traria segurança. Sendo esta uma violência de repetição, apanhavam com regularidade e frequentemente morriam assassinadas. Essa forma de violência se diluia na cumplicidade da sociedade ,“em briga de marido e mulher não se mete a colher”, e na ausência de acolhimento institucional às vítimas.
De fato a configuração da violência domestica como crime, passível de punição e a implementação de delegacias especializadas, legislações e juizados próprios para acolher suas vitimas esperaram séculos de nossa história para serem efetivadas , e o foram por uma luta árdua e continuada dos movimentos feministas.
Hoje, apesar de que esta violência continua a existir suas vítimas sabem que não devem ficar caladas porque há quem acolha suas denuncias. O aumento expressivo dos registros de violência contra mulheres no Brasil é também indicador de que se está rompendo o silêncio e a invisibilidade que cobria este tipo de agressão.
Existe entretanto em nosso país outra forma de violência ainda encoberta pelo manto da invisibilidade , uma forma de agressão perversa , silenciosa e constante: me refiro a violência sexual contra crianças e adolescentes, perpetrada por seu pais, padrastos, tios, parentes, homens adultos geralmente próximos das vitimas . Os laços de autoridade , afetividade e dependência que unem a vítima ao agressor aumentam exponencialmente seu desamparo e vulnerabilidade. Enquanto no caso da mulher adulta é ela , via de regra, que rompe o silencio e denuncia, as meninas e adolescentes , maiores vítimas deste tipo de abuso, necessitam do apoio de um adulto para romper o manto de invisibilidade que protege o agressor. Necessitam do apoio de mães, parentes, ou de instituições como a escola, ou serviços de saúde quando atendem meninas com doenças sexualmente transmissíveis e gravidez precoce.
A criança não chega sozinha a uma delegacia de polícia, nem a um hospital , tem medo de falar com a professora e vergonha de contar para as colegas, se sente envergonhada e culpada e vê seu desamparo aumentar diante da relação afetiva de sua mãe com o monstro agressor, em casos de incesto ou abuso por padastros. Confundida e aterrorizada por ameaças do agressor ela teme denunciar o que ela nem mesmo sabe como nomear.
O depoimento publico corajoso e digno de XUXA às câmeras de televisão no programa Fantástico, relatando abusos sexuais sofridos em sua infância e adolescência tem tido um efeito catalizador . A capacidade multiplicadora de suas revelações tem levado adolescentes a romper os grilhões desta forma de prisão onde o abuso sexual as une de forma perversa e aterrorizada ao agressor.
Esperamos que as denuncias se multipliquem, que os adultos que cercam a criança abusada tenham um olhar mais atento para os sinais físicos e emocionais deste abuso , e que os agressores recuem em seu comportamento predatório e criminoso.