A religião não pode ditar as normas da vida 
Jacqueline Pitanguy*

Pressões da Igreja Católica colocam em risco o acesso de mulheres adultas e adolescentes à contracepção de emergência ou pílula do dia seguinte, uma combinação de estrogênios e progesterona, que não é abortiva e é oferecida na rede pública de saúde, permitindo evitar uma gravidez indesejada se tomada até 72 horas após a relação sexual desprotegida.

Ao mesmo tempo, esta Igreja busca influenciar o Supremo Tribunal Federal que deverá se pronunciar em breve sobre o direito de interromper a gravidez em casos de fetos anencéfalos. Trata-se de uma anomalia fetal grave e irreversível, hoje facilmente detectada pelos exames pré-natais de rotina como a ultra-sonografia. Caso este direito lhe seja negado esta gestante será obrigada a levar adiante uma gravidez sabendo que o feto que está gerando não tem cérebro e é incompatível com a vida. Para esta gestante seu útero é um sarcófago.

Esta mesma Igreja é também contra o uso de métodos contraceptivos como o DIU (dispositivo intra-uterino) e a pílula anticoncepcional, posiciona-se contra o uso dos preservativos na prevenção do HIV/Aids, e combate fortemente os programas de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual, que contemplam o abortamento para as vítimas de estupro.

Há décadas acompanho a influência da Igreja Católica sobre nosso Estado laico, particularmente no âmbito da sexualidade e da reprodução humana, a sua oposição constante, persistente, poderosa ao empenho dos movimentos de mulheres pelo reconhecimento de seus direitos nestas dimensões fundamentais de suas vidas , sua pressão contra aqueles que, no âmbito Legislativo, Executivo ou Judiciário, apresentam leis ou programas que assegurem o exercício de direitos sexuais e reprodutivos e que procuram coadunar nossas normas com os avanços da ciência e da tecnologia.

Não pretendo fazer uma critica da religião, de suas crenças e seus fundamentos para tais posições. Entretanto como cidadã brasileira expresso meu profundo desacordo com a constante influência da Igreja (e não apenas Católica) sobre o Estado brasileiro, com conseqüências sobre leis, normas e políticas públicas que afetam diretamente a vida de adolescentes, mulheres e homens deste país.
A separação entre Igreja e Estado é um pilar de nosso Estado republicano e deveria ser defendida por todos que, tendo religiões, crenças e posições diversas, pretendem ter os seus direitos civis, políticos, sexuais e reprodutivos igualmente assegurados.

Um dos princípios estruturantes de qualquer sociedade democrática é o respeito pelo pluralismo e pela diversidade. Direitos implicam em opções e responsabilidades. Uma mulher grávida de um feto anencéfalo deve ter o direito de optar se deseja ou não prosseguir com esta gravidez. Ou uma jovem que se expôs a uma relação sexual desprotegida e corre o risco de engravidar deveria poder optar se deseja ou não fazer uso da contracepção de emergência.

Não se trata de impor a continuidade ou a interrupção da gestação nem de obrigar ninguém a fazer uso da contracepção. É importante que nossos representantes no Legislativo, assim como os integrantes do Poder Judiciário e do Executivo entendam que, no exercício de funções públicas têm, em primeiro lugar, responsabilidades para com mulheres e homens deste país, que têm o direito e a capacidade de tomar decisões diversas no âmbito da política, do trabalho, das relações afetivas e sexuais e na sua vida reprodutiva, arcando com as conseqüências.

Jacqueline Pitanguy é socióloga

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